Texto: Eneas Barros
Um livro reúne as ideias de dois grandes intelectuais, um crente e um descrente, sobre temas instigantes.
A Catedral de Milão é uma obra monumental, a terceira maior igreja do mundo, que levou 500 anos para ser concluída. As suas obras foram iniciadas na segunda metade do século XIV, para homenagear o nascimento da Virgem Maria, possuindo 157 metros de comprimento por 92 de largura. Em grandiosidade, está atrás apenas da Basílica de São Pedro, no Vaticano, e da Catedral de Sevilha. As obras foram financiadas por doações de tradicionais famílias de Milão, como os Visconti e os Sforza.
Ao contemplar-se o imenso interior gótico do templo, é possível ver ao chão uma lápide em mármore com os seguintes dizeres: “Carlo Maria Martini, 1927 – 2012, cardeal arcebispo de Milão”. Martini foi um grande intelectual do Vaticano, homem desprovido do fanatismo que acomete alguns religiosos, capaz de discutir com serenidade as divergências essenciais entre os que creem e os que não creem, como nesse exemplo a seguir.
Nos idos de 1995, a revista italiana “Liberal” lançou o seu primeiro número abrindo uma discussão epistolar calorosa, que duraria quatro edições trimestrais. A revista convidou o escritor egípcio Umberto Eco e o cardeal Martini para apresentarem suas ideias com total liberdade dialética, sobre temas instigantes como a existência e a invenção de Deus, mulheres e sacerdócio, aborto e engenharia genética. Os convidados trocaram cartas, que foram publicadas em livro no Brasil pela Editora Record (1999), intitulado “Em que creem os que não creem?” (Disponível nas livrarias Nova Aliança e Entrelivros).
No caso específico dos dois intelectuais, um crente e outro descrente, chama a atenção a responsabilidade nas colocações de tão antagônicos pontos de vista, os quais contaram com total liberdade de expressão e mantiveram um elevado nível nos argumentos. Observe, por exemplo, esse apelo de Umberto Eco:
“Procure, Carlo Maria Martini, para o bem da discussão e do confronto em que acredita, aceitar, mesmo que por um só instante, a hipótese de que Deus não exista: que o homem, por um erro desajeitado do acaso, tenha surgido na Terra entregue a sua condição de mortal e, como se não bastasse, condenado a ter consciência disso. Este homem, para encontrar coragem para esperar a morte, tornou-se forçosamente um animal religioso, aspirando construir narrativas capazes de fornecer-lhe uma explicação e um modelo, uma imagem exemplar”.
O cardeal Martini, por sua vez, questiona:
“O que funda a dignidade humana senão o fato de que cada ser humano é uma pessoa aberta a algo de mais alto e maior que ela própria? Tenho, portanto, muita vontade de aprofundar tudo o que possa permitir uma ação comum entre crentes e não-crentes no plano da promoção da pessoa”.
Martini demonstra preocupação com a profundidade dos questionamentos, que exigem uma linguagem nem sempre alcançada pelos leigos. Por sua vez, Umberto Eco responde: “Não se preocupe se alguns dizem que falamos difícil: eles poderiam ter sido encorajados a pensar fácil demais. Que aprendam a pensar difícil, pois nem o mistério, nem a evidência são fáceis”.
Nos últimos meses de sua vida, aos 85 anos de idade e sofrendo do mal de Parkinson, Martini mantinha-se lúcido e preocupado com os rumos da Igreja. Em sua última entrevista, publicada em 1 de setembro de 2012 no jornal Corriere della Sera, ele avalia que a Igreja retrocedeu 200 anos. Disse ele:
“O amor é mais forte do que o sentimento de desconfiança que às vezes eu percebo com relação à Igreja na Europa. Só o amor vence o cansaço”.