Por Eneas Barros
Guilhermina era ama de leite de uma das crianças da casa da minha avó. Era quem colocava as coisas em ordem, fazia a comida e ainda encontrava tempo para se dedicar ao filho que era quase seu. Em dias de domingo, procurava no terreiro uma galinha gorda, que daria sabor a um dia tão importante. Naquele tempo, galinha ao molho pardo era comida chique, que requeria uma ocasião especial, como um domingo. Guilhermina preparava uma xícara com vinagre e um pires, para aparar o sangue que escorria de um corte certo. O vinagre evitava qualhar o sangue, que seria misturado à galinha cozida para criar o famoso molho pardo.
Teresina sempre foi cheia desses costumes, que fortemente influenciaram uma geração que finda e estão deixando apenas vestígios para uma geração que se inicia. Locais que ofereçam uma autêntica Galinha ao Molho Pardo são cada vez mais raros, para desespero dos que não conseguem se livrar de um passado tão forte. Esse costume familiar, no entanto, tem refletido nas mesas de bares e nos restaurantes da cidade, trazido de uma notória influência alimentar ao longo dos anos. Os proprietários de restaurantes preparam o ambiente que os clientes almejam, reproduzindo um cenário que busca a identidade individual e a identificação com a mesa familiar. É por esta razão que muitas vezes resistimos a inovações culinárias, porque compreendemos apenas os temperos que davam sabor à nossa infância. Qualquer mudança naquele prazer é rejeitada veementemente. Chegamos a esboçar um tremendo esforço para nos adaptarmos a mudanças no paladar, mas os resultados são, na maioria das vezes, inúteis. Com a evolução rápida que Teresina vem demonstrando, ao receber influências de uma cultura atingida pela globalização, a nova geração já apresenta resultados surpreendentes, em relação aos costumes alimentares.
Seguindo o padrão de nossa educação primária, em nosso dia-a-dia comemos em família. Ao sentarmo-nos à mesa, estamos na verdade definindo como gostamos de comer, e por isso é comum buscarmos nas ruas restaurantes mais próximos daquele costume. Esse comportamento, vindo das origens remotas de nossos ancestrais, tem ditado as regras sob as quais sentamo-nos à mesa. A grande maioria dos ambientes de alimentação traz mesas com quatro ou mais cadeiras, porque raramente saímos para comer fora sem a companhia de alguém.
O cardápio é sempre acompanhado de uma pergunta que insiste em fazer aflorar nossos velhos tempos de infância: o prato dá para dois? Nesse instante, não se trata apenas de uma pergunta que tenha um objetivo econômico, mas do resultado de um processo cultural que desenvolvemos ao longo dos anos e nos faz despejar sobre a mesa os mesmos hábitos alimentares dos nossos tempos de menino. O serviço necessariamente precisa ser o mesmo, para ficarmos à vontade e nos consolarmos com uma pontinha de saudade, ainda que oculta.
Mas o ato de comer tem se transformado bastante. Nós, nordestinos, comemos para satisfazer a fome, e muitas vezes deixamos de observar o quê comemos. Somos um povo sem muita exigência, porque comemos o que nos é disponível naquele instante. Muitas vezes o paladar é deixado de lado para dar lugar à saciedade. Costumamos, inclusive, comer para dormir, ou seja, quando saímos para nos divertir, comemos como último ato da noite, aquele que nos conduz à cama. São raros os momentos em que comemos com os cinco sentidos, para sentirmos prazer não apenas pela saciedade, mas por estarmos diante de uma obra prima, como são alguns pratos que se destacam na alta gastronomia. A visão, o olfato e algumas vezes o tato são sentidos que devem se somar à audição e ao paladar, tendo este último aos poucos deixado de ser o único sentido a compor uma boa refeição.
O prato precisa se apresentar de forma atraente, capaz de despertar o sentido da visão e estabelecer um novo comportamento social. Diariamente, especialistas do mundo inteiro se debruçam sobre novas combinações de temperos e ingredientes, para acentuar o paladar dos apreciadores. A pizza Margherita, por exemplo, foi criada em homenagem à rainha, incluídas sobre a massa as cores da bandeira da Itália: o verde (manjericão), o vermelho (tomate) e o branco (queijo). A soma de muitos fatores tem alterado as mesas do mundo inteiro, e chegar a Teresina tem sido um desafio que nós hoje assistimos com uma certa nostalgia, resistindo o quanto podemos aos invasores da culinária.
O restaurante La Gondola, do Rio Poty Hotel, foi o primeiro a trazer uma cultura diferente dos costumes alimentares da sociedade teresinense. O serviço “empratado”, com porções individuais, ainda hoje encontra resistência. Ao consultarmos os estilos de pratos internacionais, percebemos que existe um padrão nas apresentações, demonstrando que a arrumação é feita para agradar aos olhos e ao paladar. As porções para pratos individuais são calculadas em peso e os acompanhamentos seguem uma combinação sugerida pelos especialistas. Ao longo dos séculos, alguns pratos têm sobrevivido e se mantido fiel às suas criações, assim como a Galinha ao Molho Pardo consolidou a sua tradicional forma de feitura. São exemplos, dentre muitos: Filé a Luís XV, Filé ao Molho Madeira, Filé a Parmigiana, Peixe à Delícia, Camarão a Provençal, Bacalhau a Gomes de Sá, Lagosta ao Termidor e muitos outros. Para uma cultura enraizada nas origens, como a nossa, aceitar esses pratos trazidos de longe é um esforço muitas vezes impossível, mas que aos poucos vem conquistando o seu espaço.
A quantidade de comida posta em pratos como os citados gera em nós uma reação, quando pouco freqüentamos esse tipo de restaurante. Consideramos, na maioria das vezes, que o preço é incompatível com a quantidade. É comum fazermos comparações com outros restaurantes, que servem pratos com os mesmos títulos e quantidades bem mais generosas, que geralmente “dão para dois”. Quando se trata de culinária, comparar quantidades não é uma atitude sábia, pois reflete mais uma preocupação econômica. Deve-se observar um conjunto de fatores que compõem o prato que vai à mesa, desde a origem dos ingredientes à profissionalização do pessoal de cozinha e atendimento, passando pela qualidade dos materiais e dos equipamentos e, ainda, pela higienização do ambiente. A reação, portanto, das pessoas pouco familiarizadas com esse tipo de serviço “empratado” é muito mais o reflexo de uma cultura da culinária familiar do que a questão da quantidade e do preço.
Ao freqüentarmos ambientes com aquelas características de serviços culinários, muitos vezes desconhecemos as opções do cardápio e geralmente não encontramos o pedido que estamos habituados a fazer em outros locais. A tendência é rejeitarmos as novas sugestões. Quando nos são apresentadas oportunidades para conhecermos como outros mercados tratam a culinária, passamos a melhor compreender essas atitudes inovadoras na cozinha local. São Paulo, por exemplo, é considerado um dos maiores centros gastronômicos do mundo. Ao estudarmos o comportamento do paulista à mesa, concluímos que o preço não é determinante, mas o sabor e o ambiente, aliados a um excelente atendimento.
São incompreensíveis determinadas atitudes nossas, em relação ao hábito de sentarmo-nos à mesa de restaurantes. Com diferentes padrões sociais de vida, comportamo-nos de diferentes formas, quando saímos para comer fora. Uma observação empírica nos leva a crer que, ao optarmos por restaurantes simples, que oferecem a tradicional “comida caseira”, não exigimos conforto, nem atendimento, nem talheres de qualidade e nem equipamentos sofisticados. É preciso apenas que a refeição chegue com o sabor que nos remeta à nossa infância e resgate um passado que se está apagando. Nesses ambientes, não ligamos para banheiros fétidos ou garçons mal vestidos, nem importa que à cozinha se misturem gatos e cachorros, que os alimentos sejam acondicionados inadequadamente ou que o pedido demore “um pouquinho”. Os bastidores não nos interessam, mas apenas a comida que geralmente “dá para dois” ou até para seis! É nesses restaurantes que os garçons se misturam aos clientes para opinar sobre o jogo do dia, para comentar o último capítulo da novela ou para opinar sobre o horário eleitoral. Muitos atendentes juntam-se em rodas para assistir a uma televisão estrategicamente colocada para os clientes, que precisam assoviar ou gritar o nome do garçom entretido. As televisões tornam o ambiente mais caseiro ainda: a patroa não perderá o capítulo da novela nem o patrão o seu jornal preferido. Estamos em casa, em nossa sala de jantar, essa é a grande verdade.
Por outro lado, quando decidimos comer em um restaurante mais sofisticado (aquele que apresenta pratos diferentes, sem o sabor de nossa infância), comportamo-nos de forma completamente diferente. Sentamo-nos à mesa como se desde cedo estivéssemos acostumados àquela situação inusitada, mas no fundo sabemos que não é bem aquilo que queríamos. Ficamos exigentes, bem ao contrário do que somos naquela situação anterior. Passamos a observar os erros do garçom, o tempo de atendimento (que deve ser o mais rápido possível) e a cerveja sempre “estupidamente” gelada. Um pequeno deslize joga toda a noite escada abaixo. Um filé mal passado, uma pizza bem assada, um molho picante ou um imposto cobrado são o passaporte para os nossos direitos afrontados. Um ambiente cuidadosamente projetado não nos interessa.
Pratos especiais e talheres de elevado padrão não nos interessam. Banheiros asseados, boa música, cardápio personalizado e atendimento profissional não são considerados diante de nossa insatisfação por um prato que sequer lembra o tempero de nossas avós. A quantidade é geralmente um absurdo! Um prato que não “dá para dois” é um assalto. Ao final, como não temos mais a quem e a quê responsabilizar, dirigimos as nossas farpas ao resultado final: a conta. Nela não enxergamos a procedência dos ingredientes, os investimentos em treinamento de pessoal, a qualidade dos materiais e equipamentos ou a decoração que torna o ambiente agradável e aconchegante. Se uma garrafa de vinho custa uma certa quantia em um supermercado local, por que haveria de custar o triplo em um restaurante desses? – uma pergunta que fazemos atônitos. Se não tivermos a mente aberta para entendermos o funcionamento desse novo mundo cultural que nos é apresentado, dificilmente deixaremos as raízes que nos prendem a velhos tempos.
Um dia, quem sabe, uma ama de leite fará chegar a São Paulo uma galinha gorda, preparada em um molho pardo capaz de mudar completamente os hábitos culinários dos paulistas… Eis aí é a nossa vingança!