Por temperamento e preguiça, não sou afeito a ruminar lembranças. Atento ao preceito bíblico – “ a cada dia o seu mal” – procuro ater-me ao presente com suas armadilhas e aporrinhações. Com o poeta Drummond, aprendi: “O presente é tão grande, não nos afastemos”. Vê-se que não estou sem bússola. O diabo é que, às vezes, o passado que já julgávamos cinza fria, ao sopro de uma lembrança, “volta a incomodar”.
Na semana passada, resolvi almoçar no Riverside, o que não é comum. De repente, enxergo um dileto amigo, velho companheiro das peladas que, aos sábados, disputávamos no setor de esporte da UFPI. Embora estivesse numa cadeira de rodas, um tanto debilitado, era ele, sim: o Bonfim. Levantei-me e fui abraçá-lo com a mesma alegria com que o abraçava nas tardes de sábados. Além de habilidoso no trato com a bola, Bonfim era um peladeiro leal, incapaz de uma entrada faltosa, de uma jogada violenta, coisa rara entre peladeiros. Embora judiado pelo diabetes, ficou feliz com o reencontro: rimos um bocado, relembrando lances engraçados. Prometi visitá-lo o mais breve possível, o que pretendo fazer.
Ao vê-lo afastar-se, não pude evitar que um turbilhão de lembranças me acorresse. Confesso que, em matéria de perdas, a mais dolorosa que experimentei foi quando o médico me deu o ultimato: “Ou para com o futebol, ou vai para a cadeira de rodas”. Por muito pouco, não fiquei com a segunda opção. Durante uns 60 anos, corri atrás de bola como um alucinado. Embora nunca tenha passado de um canela de pau, encarava as peladas como jogos decisivos…
Os peladeiros da UFPI éramos uma grande família, com direito a violentas agressões verbais e grandes gestos de solidariedade. Em campo, todas as barreiras se dissolviam: médicos, pedreiros, professores, magistrados e estivadores convertiam-se em simples peladeiros. Alguns marcaram época por seus defeitos ou qualidades. Leonel, por exemplo, foi agraciado com o título de “o goleiro mais vazado do mundo”. Notabilizaram-se também: Luiz Édson, pela “suavidade” nas divididas; Gero, pela habilidade; William, pela impetuosidade; Zé Sérgio, pela “habilidade”; Beto Gato pelas pixotadas; Antônio Luiz, pela “velocidade”; Torres, pelo humor… Depois das peladas, realizavam-se as famosas “resenhas” , regadas a cerveja, que ninguém é de ferro.
No final de cada temporada, contratava-se um cinegrafista amador para registrar a última partida do ano. Depois, na casa de um dos peladeiros, a confraternização e a exibição do vídeo. Meninos velhos brincando de ser felizes…
De repente, chega a velhice e, impiedosamente, nos empurra para o estaleiro, para a invalidez, para o nada… Deve ser complicado para quem nunca jogou futebol entender o fascínio que a bola exerce sobre os jogadores, sejam profissionais ou simples peladeiros. Com a autoridade de peladeiro juramentado, eu lhes asseguro: só o futebol, praticado como simples atividade lúdica, nos devolve as alegrias da meninice distante…