Quando dona Purcina, aos 80 anos de idade, foi sequestrada pelo mal de Alzheimer, não pude deixar de fazer a pergunta patética: por que ela? Explico: minha mãe parecia feita de certezas. Tinha resposta pronta para todas as perguntas. Era prática, direta, exata. Nunca a vi hesitante diante de um problema. Se alguém afirmava: “Não vai dar certo”, ela disparava a pergunta desconcertante: “Você já tentou?”. Vê-la embarcar no trem do esquecimento sem direito a regresso deixou-me triste e confuso. Decidi anotar coisas que ela falava ou fazia, tentativa de preservá-la em minha memória.
Quando ela se foi, em 2005, comecei a pensar na possibilidade de transformar aqueles apontamentos num arremedo de biografia. De cara, dois problemas: encontrar o tom adequado e manter um mínimo de isenção e distanciamento para fugir à pieguice, que abomino. Não bastasse isso, eu não queria um livro triste: dona Purcina era é melhor tradução da alegria. Um dia, sentei-me ao computador e fiz o livro inteiro de um fôlego. Deixei-o de molho por uns três anos na gaveta. Outra vez, uma pergunta incômoda: quem se interessaria pela história de uma velha doceira que, em São Raimundo Nonato, era conhecida como “tia Purcina”? Talvez os “sobrinhos” e alguns amigos, ninguém mais. Ainda assim, por minha conta e risco, resolvi editá-lo. Eis a breve história do livro Dona Purcina – a matriarca dos loucos.
Para minha surpresa, pessoas de todas as idades leram o livro e se manifestaram, tecendo comentários elogiosos. Um crítico cearense chegou a sugerir que eu “saísse” da história e reeditasse o livro. Segundo ele, seria um romance que se enquadraria perfeitamente na linhagem do chamado “realismo fantástico”. Expliquei-lhe que dona Purcina não era uma personagem inventada por mim. Era minha mãe. Resolvi, então, ler o livro como se fosse apenas um leitor e não o autor. Percebi, com uma pontinha de alegria, que a velha era tão extraordinária que acabou por salvar o livro. A primeira edição esgotou-se rapidamente.
Como a obra foi adotada em algumas escolas de Teresina e do interior do Piauí, resolvi fazer uma segunda edição, sem alterar uma vírgula. O livrinho, que está no “forno”, deve ficar pronto na próxima semana. Descobri que o livro não precisa da minha presença para manter-se de pé. A velha matriarca só precisou de mim para registrar-lhe a trajetória singular. Decididamente, a velha é bem maior do que eu. Que viva,pois.