“O sertão está em toda parte, o sertão é dentro da gente”, ensina Guimarães Rosa. Em mim, ele se manifesta quando caem a primeiras chuvas. É uma sensação estranha: como se a terra me chamasse a labutar nela, a tirar dela o que só ela nos pode dar. Como nasci no coração do semiárido piauiense, aprendi a ver na chuva o milagre da multiplicação das vidas. No sertão do Caracol, chovia pouco, muito menos que o necessário. Então, a chuva realmente sabia a milagre.
Este ano, com a intensidade das chuvas em Teresina, bateu-me uma incontida vontade de voltar ao chão onde nasci. Aproveitei o feriadão da Semana Santa e rumei para São Braz do Piauí onde estão as minhas raízes. Resolvi adotar como lema a máxima do escritor Ivan Ângelo: “ Abri mão da volúpia de chegar ligeirinho pelo prazer de estar a caminho”. Na companhia de dona Áurea, munido de farofa, água, máquina fotográfica e nenhuma pressa, fomos avançando lentamente. A melhor das surpresas: a estrada inteira está bordada de flores. Flores de todas as cores e versidades. Entre Colônia do Piauí e Simplício Mendes, as jetiranas formam imensos tapetes lilases,rendilhadas de pequenas flores brancas e amarelas… Não me lembro de ter visto nada igual.
Mas a beleza também esconde sinais a serem decifrados. Depois de São João do Piauí, começaram a aparecer as socas de canafístula com as belíssimas flores amarelas. A despeito da beleza, um sinal bem triste: “fim de inverno”. Tivesse chovido por lá metade do que choveu em Teresina, estaria de bom tamanho. Mas, na região, as chuvas foram rarefeitas, insuficientes até para encher os pequenos reservatórios. Significa dizer: no meio do ano, moradores da caatinga terão de recorrer aos famigerados carros-pipas.
Parte da população já dispõe de cisternas, mas os animais, sem água nos reservatórios, sofrem além do suportável. Em São Raimundo Nonato, o drama persiste: a água do Açude Petrônio Portela tornou-se absolutamente intragável. Mesmo tratada, tem cheiro e gosto desagradáveis. Hoje, na cidade, o comércio mais próspero é o de água mineral. Sei perfeitamente o que significa viver sem água potável. Enquanto vivi em São Raimundo, bebi lama do barreiro “Duvige”, um caldo de amebas que me arruinou os intestinos. Meio século depois, a situação é praticamente a mesma. Bate uma enorme sensação de desesperança…
A mudança mais significativa no sertão do Piauí é a profusão de motos circulando por toda parte: estradas, caminhos e carreiros… As outras novidades: as antenas parabólicas espetadas nos roçados sem lavoura e os celulares de última geração… O sertão que me habita não tem motivos para festejar: continua seco,pobre,triste.